Sexo e Gênero: Dizer-se como se sente

20 de julho de 2020 0 Por Redação

Buscamos a serenidade da noite. Na praça, somos fregueses da estação de exercícios. Outros corpos frequentam o lugar. Toma-nos a atenção meia dúzia de pessoas ao violão e canto piano. A circulação é pouca.

Há haitianos, poucos; costumam passar por lá. Comentamos seus sorrisos: branco vivo no preto retinto; seus bonsoir. Há senhoras e seus cachorros, levados a passear. Vez por outra há travestis, há transexuais.

Noutro dia havia um corpo alto, forte, bonito. Ombros destacados pelo largo que eram, o que dizia homem. O mais dele dizia mulher: os cabelos, o andar construído como feminino, as vestes feitas de delicadeza.

O corpo nascido macho não venceu o desejo de ser fêmea. Estava de vestido, desses airosos, revelando sensualidade. Detalhe das etiquetas de feminilidade numa alça caída. A minúcia provocante anunciava o feminino.

A cédula de identidade diria masculino; difícil mudar o liame formal do registo de nascimento. O Supremo Tribunal Federal recém ressignificara (28fev18), porém, a relação do ser de um sexo com o sentir-se de outro.

A natureza nos selecionou como corpos machos ou fêmeas. Os encontros com o mundo inscrevem nos corpos uma história. As histórias pessoais produzem na biologia uma condição de gênero: sentir-se homem ou mulher.

A condição sexual, todavia, não tem sido a expressão de vontade dos corpos. A circunstância sexual resta crivada pelo Estado, pela religião, pela medicina, pela psicologia. A condição sexual encrava uma relação de poder.

O ideário liberal, fiador de franquias individuais, tem recebido, no Brasil, consubstanciação em sua forma nas decisões lúcidas do STF. O Supremo, vencendo costumes anacrônicos, tem empoderado o indivíduo.

Indivíduos promovem-se e se dignificam no que lhes distingue. Democracias que vão além das formalidades e se realizam no exercício da vida reconhecem peculiaridades; distinguem o indivíduo diante da multidão.

Cármen Lúcia, então presidente da Corte, arrematou os votos, robustecendo-os ao aplicar palavras de grande força moral: “Não se respeita a honra de alguém se não se respeita a imagem que [esse alguém] tem.

Somos iguais, sim, na nossa dignidade, mas temos o direito de ser diferentes em nossa pluralidade e nossa forma de ser”. Honrar a personalidade é deferir apreço por escolhas, por mais estranhas que elas se nos pareçam.

O exercício de diferenças pessoais é tópico de dignidade. Ninguém exercitará sua dignidade constitucional se não exercitar sua identidade. “A identidade de gênero não se prova”, lembrou o ministro Luís Roberto Barroso.

Para o ministro Marco Aurélio Mello, “é inaceitável no estado democrático de direito inviabilizar a alguém a escolha do caminho a ser percorrido, obstando-lhe o protagonismo pleno e feliz da própria jornada”.

“Não há espaço para dúvida quanto à importância do reconhecimento para a autoestima, para a autoconfiança, para a autorrealização e para a felicidade”, arguiu Ricardo Lewandowski, nobilitando a autoafirmação.

Luiz Fux destacou a “importância de adequar a identidade de gênero à busca pela felicidade”. A felicidade, esse desiderato humano ao qual devemos o cuidado de oferecer o menos que pudermos de empecilhos.

“O julgamento é um divisor de águas a ser celebrado. Até sua ocorrência, víamos uma peregrinação burocrática de pessoas que desejam ver reconhecidos sua identidade de gênero e registro cível de sexo e nome.

poderão exigir do Estado, sem preconceito ou violência institucional, o reconhecimento pleno da sua busca à felicidade”, resume Carlos Paz, defensor público-geral da União (Letícia Casado, FSP, 02mar18).

O rol de estorvos oponíveis à autodeterminação de gênero – licença judicial, atestado médico e psicológico, intervenção cirúrgica –, essa ambulação indigna foi-se; o indivíduo está livre para dizer-se como se sente.

Na praça, o corpo decidido por ser mulher. Noticiar-lhe o estado de legalidade? Bobagem nossa: o corpo já se autorizara. Tudo nele era feminino, seus desejos antecipados ao Direito constituíram a decisão judicial.